9.5.14

HACKTIVISTA GLOBO

Gente do céu... me deram um link com um clip da novela "Geração Brasil" para assistir. E fiquei preocupado. Eu sempre achei que quando "hackers" aparecem na TV ou no cinema, os caras resumem em 2 segundos coisas importantes e destroem, fantasiam em cima da vida real, levando a outras visões, que não tem a ver com nada. Nesse clip abaixo (não assisti o capítulo inteiro), vejo que o personagem faz referência ao fato de que invadir um sistema não é fácil (uhhuuuu, parece que uma noite é o suficiente). O cara faz uma invasão para ver se consegue provas de que um professor é racista. Sem ter nenhuma olheira no rosto (sinal de que não passou a noite em claro - passar a noite sem dormir no computador é típico) nem outros sinais (que tornariam a coisa menos fantasia), ele vira pro amigo e diz que o tal pretenso professor pode mesmo ser racista:

"Matias, consegui: nos últimos cinco anos o professor Solano reprovou 8 alunos, 6 deles eram negros"



http://globotv.globo.com/rede-globo/geracao-brasil/t/cenas/v/davi-invade-o-sistema-da-faculdade/3333831/

É, em novela pode tudo.Mas...
1) Na vida real, professor que em 5 anos só reprova 8 alunos, só em faculdade particular muito vagabunda, "fábrica de diploma". Trata-se de faculdades em que o interesse é a mensalidade, o nível de reprovação é baixo. A pessoa pagou, ela passa. Mesmo assim, existe reprovação por nota, por falta, por abandono de curso. E se for em "fábrica de diploma", a pessoa pode recorrer, ela passa na matéria.
2) Na vida real, pessoas costumam não colocar a cor quando preenchem formulários. Tipo: o sujeito que é só um pouco pela escura se considera branco, no máximo pardo, quando escreve sua cor.  Se tem a pele um pouco mais escura, se declara mulato. Mas tudo bem, o cara invadiu o banco de dados, viu a foto dos caras. E viu pela foto ou outro dado qualquer, os estudantes reprovados eram negros.
3) Já se começa falando "isso não é prova". E a resposta "é um começo". Ou seja qualquer indício de que o sujeito é racista já vale.


Houve ocasião em que tive uma função no CRUSP (até escrevi livro sobre isso) e uma das minhas atividades era escutar o sujeito se justificando para não perder a bolsa-moradia. A bolsa moradia na USP (moradia gratuita para estudantes matriculados) depende de aprovação em matérias. Histórias de professores que reprovam por motivos estúpidos são comuns no ensino superior. São chamados de "professores picaretas". Porque pedem coisas na prova que não deram em sala de aula.

Dentro da USP, já ouvi histórias e histórias de professores "picaretas". Alunos perseguidos, também já ouvi muitas histórias. Aliás até já ajudei a fazer abaixo-assinado (não precisei usar) contra professor (tinha gente que tinha sido reprovada na mesma matéria 5 vezes). E não me convenci que aquela cena foi bem feita. Porquê?

E. não sei o que a personagem Verônica vai fazer (ela diz que a mera estatística de 80% de reprovação é suficiente para fazer não sei o quê). Tem que ver se os colegas não estão fazendo bullying com os colegas negros. Tem que ver se os caras que reprovaram com esse professor, se eles estavam indo bem em outras matérias. Tem que ver se eles não tem deficiência específica com a disciplina ministrada por esse professor (basta checar as notas de aprovação no vestibular, se no vestibular o sujeito foi mal em matemática e a disciplina do tal professor é estatística, ooops, aí tem coisa).

Claro, novela é uma coisa inventada, saiu da cabeça de uma equipe (atualmente, uma equipe que escreve uma novela tem muitos, muitos escritores). Mas o que quero dizer com esse post longo é que, eletronicamente, via invasão de banco de dados, não dá para se comprovar que um professor reprova só por conta da cor de pele. Mesmo se 80% dos alunos reprovados por ele são de cor negra (claro, estou tirando conclusão com base num minúsculo trecho de novela, o personagem pode perfeitamente ser racista, no mundo das novelas tudo é possível).

Como eu não assisto essa novela, é possível que sim, o professor é mesmo racista. Só que, na vida real, todo mundo se lembra daquela pesquisa que gerou o movimento de fotos postadas no facebook "eu não mereço ser estuprada".

veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/2014/03/28/a-culpa-do-estupro-nao-e-da-mulher-mas-a-da-confusao-e-da-pesquisa-do-ipea-essa-sim-merece-ser-atacada/

Quando um sujeito invade um banco de dados para comprovar uma hipótese, ele está invadindo a privacidade de um monte de gente. Se ele usa esses dados para justificar que um professor é racista e fala isso para outras pessoas, ele está criando uma campanha contra essa pessoa.

Aí fácil, fácil, caímos no caso da Escola Base, onde os professores foram incriminados com a pecha de pedófilos, só porque uma maioria de crianças de 4 anos falou em abuso. No link abaixo tem mais info.


jornalggn.com.br/noticia/o-caso-escola-base-20-anos-depois

Não sei que rumo este clip que assisti vai ter na novela. De repente se comprova que o professor é mesmo racista e.. então fica certo o cara invadir para colher provas? Espero que a Globo não alimente essa história de que existe justificativa em invadir a privacidade alheia para colher provas estatísticas contra pessoas que a gente não gosta.

Muito tempo atrás, um jornal publicou que "Adolf Hitler é o herói favorito da Escola Superior de Guerra". Quem lesse a notícia toda, ia descobrir que houve uma votação entre os alunos, "qual o seu herói favorito" e 2 alunos votaram em Adolf Hitler. O resto todo mundo votou no seu mas o número maior foi 2. Explicando melhor, dentre talvez 10, 20, 30 pessoas que votaram cada um no seu herói favorito, 2 alunos votaram no mesmo herói, que era Adolf Hitler. Com base nessa estatística, o título da matéria estava correto. Embora fosse mais adequado dizer outra coisa.

Tomara que os professores da rede pública, de faculdades que tenham reprovado alunos que não atingiram a nota e eram de cor diferente da branca não sejam pejorativamente chamados de racistas só porque fizeram o óbvio: demonstrar que determinados alunos precisavam estudar mais ou ter aulas de reforço. Do modo que eu enxergo a coisa, professor vai começar a dar nota alta para aluno de cor, só para evitar ser chamado de racista, que nem acontece na novela. Só para evitar o boato de racismo.

Ou boato não é suficiente para desencadear tragédias? Vide

portuguese.ruvr.ru/2014_05_06/mulher-morre-linchada-no-brasil-apos-boato-nas-redes-sociais-2237/

Pelo que vejo, os anos passam mas a Rede Globo ainda precisa aprender a controlar o que mostra nas novelas.

Nessa cena pelo menos, a novela "Geração Brasil" pode estar incentivando invasão da privacidade "desde que tenha bom motivo". Pelo menos é assim que enxergo a coisa. "Não é prova mas é um indício". Tudo bem que racismo é crime inafiançavel, moralmente errado, etc, etc.. Tudo bem que a novela da Globo está tentando criar uma situação de "hacktivismo" a la Snowden, mas parece-me mais que a emissora está dando voz ao Barack Obama, cuja política de espionagem aos cidadãos do mundo todo tendo como motivo "o combate ao terrorismo". O problema, a meu ver, é que várias pessoas que vão péssimo nos estudos por alguma razão usam também o argumento de que o professor está "perseguindo".  Independente da cor, isso acontece. Mas quem tem que checar é a comissão de alunos de uma faculdade, não um "hacktivista".

Uma das minhas ex-namoradas jurava, dois meses depois de se transferir para a Letras-USP, que a professora dela era sapatão e estava assediando ela (até podia ser mas não acredito tanto assim). Se todo mundo que se acha perseguido pelo professor começar a invadir a privacidade, os alunos da Escola Politécnica da USP podem dar o exemplo e fazer logo uma revista voltada para a privacidade dos professores da Poli. Muita gente acha isso lá, brancos e pretos. Também na Física USP. Em muitas outras faculdades e em muitas escolas de todo o Brasil e do mundo.