CONTO, TRECHO DE LIVRO - Como muita gente, estou até curioso sobre o caso Richtofen. Tenho um lado escritor que estou tentando desenvolver. Abaixo, tem um trecho que escrevi e que dá uma idéia como é essa coisa de "controle familiar".
Interfone.
- Alô? Glória? Que que você quer? Sim, tudo bem, porquê? Você quer que eu aumente o som? Tudo bem.
Acabou a música, a Glória chamou de novo, me convidando. Vou ou não vou? Se eu estiver com a cuca afim, o negócio era ir lá, curtir um pouco. Curtir o quê? Ela não vai dar para mim. Será que vai?
- Pô, cara, tô me sentindo meio só, lá no flat. Vamos tomar um vinho, heim?
- Sei lá, Glória, tenho que completar um trabalho para quarta-feira, tô meio de baixo astral..(Que saco, pô! Parece até que ela vai dar pra mim).
- Ah, cara, chega lá! Estou sozinha. Você vai me deixar sozinha lá em casa nesse domingo a noite, vai? Vai ter coragem?
- Tá booommm...(Talvez até vai). Tô indo.
Fui meio em dúvida. Toda vez que passo por essa porta, sinto a mesma coisa. Parece outro universo. Não reconheço nada do meu quarto. Só uma espécie de frigobar, que parece com o meu. E ela só me chama quando nem estou pensando nela. Ou quando não estou querendo nem saber dela. Parece praga. E todas as vezes, ela está com esse ou outro short justinho, apertado. Com essa camiseta branca, agora sem sutiã. Com essa imagem, não sei de que santo.
Nunca vejo ela sair assim, na rua, parece quase nua. E já virou costume se sentar no chão, para assistir televisão ou novela. Ela fumando um cigarro Malboro. Porquê Malboro? Têm Hollywood, Minister, Carlton. E em todas as vezes, ou melhor, esta é a terceira: Estou enchendo os dois copos de vinho e quando já estou quase terminando sinto algo nas costas. Só para ver ela sentada, abraçando as pernas, com a mão direita segurando a medalhinha amarelada, que finge mastigar. Aí, desvia o olhar.
Entrego o copo e sento, do lado do sofá. O sofá dela serve para colocar revistas, bandejas, tudo, menos para sentar. Se sentar no sofá significa sacrificar o corpo, pois é preciso levantar pra pegar a bebida na geladeira, e tira todo o astral que o momento pode estar tendo. Pô, depois que você fuma, você não sente uma p(*) duma preguiça. Confessa, vai..Confesso. Se meu pai ouvisse isso, me deserdava. Depois de dar um p(*) bronca e uma p(*) surra. Vai, o seu pai não Depois de dar um p(*) bronca e uma p(*) surra. Vai, o seu pai não é tão careta assim..Não, a minha família é que é. Como é sua família. Nem te falo, não estou afim hoje, legal esse disco, é Rita Lee? Não, é Simone. Você não conhecia? Não muito, comecei a escutar discos agora, depois que saí do seminário. Seminário, você ia ser padre? Não, é um colégio lá de Minas, a gente chama de seminário porcausa das aulas de catecismo que os caras tentam enfiar na cabeça da gente. Jura? É. Que nem naquela novela? É, o pessoal que estudava lá gostou dela. É que meus pais, minha família, acreditavam que ter um padre aqui na terra valia como cartão de entrada quando chegasse no céu. Isso não existe mais, eu não acredito! Nem eu, mas demorou até convencer eles. Só depois da separação o sonho foi embora.
Separação, que que tem a ver? Um queria que o outro fosse pro inferno! Putz, acho que você já bebeu vinho demais. Seus pais não são separados? Não, viviam brigando, até que eu saí de casa. Aí eles decidiram se separar. Não tinha mais a desculpa "da nossa filhinha"? É, a filhinha foi embora, vamo pro Cartório hoje, antes dela voltar! Pai é pai, mãe é mãe, mas lar doce lar, só na frente da Tv. Ha,hahahahaahahahahahah. Legal, essa. Pra quem ia ser padre até que você é bem legal...apesar de que agora que você falou, até que dá pra ver mesmo um jeitinho de santo. Santo do pau oco? É, vai ver que é, você ainda passa a roupa pra ir na missa todo domingo? Não, (tomo um gole de vinho) não dá tempo de pegar o cinema depois! Ha, hahahahahahahahahah. Você curte cinema? Pra caramba. Gostou do "Exorcista"? Só na hora da menina na cama. Sério? É que sou meio "Metal", saca? Você gosta de Heavy Metal?
Médio, um amigo me falou que era o jeito que eu compensava minha educação conservadora. Meu, tu foi quase foi padre e hoje até fala gíria.. e ainda curte Rock pesado! É, a gíria, eu aprendi morando no Rio de janeiro(só falta ela me perguntar como era vida de seminarista), mas é mais um lance meu de tentar me enturmar, sabe?(Pô, mas ela agora tá mastigando o polegar) Quando mudei, tive que me adaptar ao ambiente, foi um lance de cabeça, foi difícil(pronto, agora tô sem o que falar), o pessoal estranhava meu sotaque, tinha o problema de achar pecaminoso uma mulher andar de biquini na praia (pegou a almofada no colo, abraçou e agora tá roendo a unha do indicador), foi uma barra.
Putz, cara, legal que você saiu fora. Porquê, seus pais eram religiosos? Não, é porquê, sei lá, você não parece muito com o tipo de um padre. Ô, obrigado, já valeu a noite. E outra é que esse troço de religião já deu o que tinha que dar.
Sabe que é verdade...Meus pais é que ficavam falando nisso.. Em religião? Não em Igreja, "casamento".
O telefone tocou.
- Alô.
- Sei..
- Não. Não dá.
- Hoje não.
- Escuta, Dax, não vou ficar repetindo tudo de novo!
- Sei.
- Olha, têm uma amiga me esperando alí na porta!
- Sei.
- Não, Dax. Juro que é uma A - MI - GA !
- Tá bom, Dax, amanhã eu te telefono. Tchau!
Procurou o maço e acendeu um cigarro.
Perguntei, ela me falou que era um ex-namorado.
Me explicou que hoje o pai dela morava longe, e de vez em quando telefona preocupado com ela. Vivia morrendo de medo que ela se perdesse na cidade grande, falava para ela pensar melhor, voltar a morar com ele, ou com a mãe, lá no interior.
Tava certo. Comentei com ela que achava certo o pai ter um pouco de preocupação. Afinal de contas, pô, havia gente ruim pra caramba, vai ver como é que entra na cabeça dele uma menina, vá lá, uma garota, morar sozinha numa cidade grande? Vai saber quando o namorado é gente fina ou não? Tem muito malandro por aí...
Ela olhou para as suas mãos um instante e falou:
- Mas é isso, pô, é exatamente isso que está errado. Ninguém pensa que uma mulher possa ser perfeitamente capaz de decidir pôrra nenhuma!
Por um instante, achei melhor não discutir. O papo tava bom. Muito bom. Mas me convencer de que debutante, ou mesmo uma garota, possa ter vida inteligente, vai levar um tempo. Eu vou acabar dormindo aqui.
- Eu sei o quê você está pensando.Até já sei o quê você está pensando. - Ela se curvou um pouco para apontar o dedo, depois se encostou de novo na almofada. - Mas você sabe que quê aconteceu quando eu completei 15 anos, tive meu primeiro namorado? Não a primeira paquera ou o coleguinha da escola, mas o primeiro homem que eu senti que amava? O que que aconteceu quando o levei para conhecer meus pais? Qual foi a conversa?
- O quê?
- A primeira coisa que meu pai me perguntou sobre meu primeiro namorado foi quem era o pai dele. Depois, onde ele morava, em que colégio ele estuda, quais são as notas dele, o que ele quer ser, se ele trabalhava ou não, tudo issoquando a gente ainda nem tinha saído junto!
Pensei um instante:
- Pô, mas seu pai estava se preocupando com você. Vai ver que simplesmente não foi com a cara do sujeito, ou achou que não era legal - eu não sabia que opinião dar.
- Conversa. Pô, era o cara que eu amava. Eu tinha escolhido. Aquela conversa era oquê? Controle de qualidade?
Desencostou de novo da almofada. A única coisa que eu penso é o caso da minha tia. Mas se eu comentar que minha tia arruinou a vida dela casando com um cara que não era lá essas coisas.. ela não vai gostar.
- O pior não foi isso. Daí em diante, até mesmo minha mãe: se eu falava que não sabia, começava aquele sermão, de que tem muito malandro por aí, que os homens só querem se aproveitar, que fazia parte do dever deles falar essas coisas, para eu não vir chorando mais tarde.
- Pô, mas desse jeito? Pelo que você falou eu achava que seus pais eram liberais, não te enchiam o saco.
- Eram muito liberais. Até meus doze anos, era um barato. A partir daí começou. Me perguntavam porque que eu não namorava sicrano, ou então beltrano, que eram excelentes partidos, que eram gente conhecida. Eu respondia: fulano es-tá namorando Sicrana, irmã do Beltrano. E Beltrano? Beltrano é que nem irmão, a gente nem ia ter assunto. E o Sicrano? E aí ia desfiando uma lista de boçais ou de caras que não tem nada a ver comigo. Todos chatos, ou comprometidos...
- Bom, mas espera aí. Acho que deve ser normal esse tipo de lance.
- Só se for na sua cidade. Olha, se eu fosse homem, podia namorar a mulher que quisesse que ele nem olhava. Só perguntava que horas que eu ia voltar. Seu pai não faz assim?
Eu podia comentar as brigas que tinha tido com o velho, podia falar o que aconteceu quando usei o carro dele, porquê a gente não se dava bem, mas estava meio curioso em ouvir, sei lá, talvez fazer a defesa dos pais dela. Nem sei o porquê.
- E o pior de tudo. Quando ele perguntava porque é que estou namorando aquele cara! O sujeito é o maior mulherengo, não quer nada com os estudos, não tem onde cair morto. Mas pô, o pai do cara tem um puta carro, o sujeito é o rei dos Pegas lá na Lapa.
- Essa resposta também me derrubou. Namorar um cara porcausa de um carro..
- Mas você não entende quando você quer exibir a menina com quem você sai como um troféu? Todas asmeninas do colégio estavam implorando pra sair com ele. Imagina se vou ficar falando pro papai que vou sair com esse cara só por causa do carro.
- Você saiu mesmo com ele?
- Mas não é por aí! - Agora ela estava sentada, olhando as mãos estendidas, como se não conseguisse explicar - Não
era nada sério. Era um cara que você namora uma semana, depois espera a ligação dele pra falar que.. que..que não quer mais sair! Que não aguenta mais a falta de responsabilidade dele, sei lá!
Pensei quanto tempo eu ficaria com essa menina se fosse namorado dela. - Mas a coisa não parou por aí! Só sei que desisti de apresentar os caras que eu conhecia para minha família. Não dava, pô. Todo cara que eu apresentava, eles me chamavam pro lado e falavam que tinham reencontrado o outro fulano, aquele que era bem melhor, parecia que ele tinha emagrecido um pouco, vai ver que é saudade sua, vocês podiam tanto ficar juntos de novo..
E eu ouvindo o desabafo. Fiquei ouvindo esse papo por mais uns quinze minutos. Depois comecei a preparar a velha sequência de gestos de saída: Comecar a olhar no relógio. Depois de um tempo, olhar de novo, comentar as horas. Em seguida, ir no banheiro. Na saída, colocar a mão na cabeça e dizer que acabei de lembrar de um compromisso amanhã. Tenho que ir dormir. Aí ela fala que está cedo, ou vai olhar o relógio, daí pede para que eu fique mais um pouco. Depois para de falar pra ficar e começa a elogiar minha companhia, comenta que fazia tempo que não comentava esse lance com alguém e fala que a gente precisa bater um papo mais vezes, e que se eu quiser aparecer, é só bater na porta. Aí a gente se despede. O sorriso está enorme nos olhos dela.
Quando chego no apê, noto que estou até com nojo. Tudo que eu achava certo, de repente foi xingado de careta. E não é só isso. Tudo que eu achava que era ser o melhor pra conquistar uma menina foi taxado de chato, de boçal, de idiota.
Tudo que eu pensava sobre cavalheirismo foi pro lixo. Tudo o que eu pensava sobre ter uma companheira, sobre ser
um cara legal com"elas", sobre não ser um canalha, tudo estava errado. Do ponto de vista "delas", a diferença entre eu e um manequim de loja é que o manequim se veste bem. Que tipo de cara "elas" querem? Não sei. Nunca mais apareço lá. Nunca mais.
Passei no elevador, tinha um grafite:
"Liberte o gay que jaz em vossa Excelência!"
É demais. Como é que o cara vai escrever uma porcaria dessas! É um merda. Vai a merda! Não. Não vou ficar lendo essa porra todo santo dia no elevador. Fui no apê, peguei uma caneta de escrever em camiseta e completo a frase:
"Se jaz, é porquê morreu de Aids"
"Ass: Sua Excelência"
Este trecho faz parte do meu livro "O CRUSP VISTO POR UM MINEIRO" (Derneval R.R. Cunha), disponível gratuitamente (free) em http://crusp.cjb.net ou
http://crusp.virtualave.net/mineiro.htm
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